Os médicos explicam-na como uma amplificação central da dor. Os doentes como um ardor difuso no corpo, perdas de memória gritantes e um cansaço de deitar por terra. Ainda não se sabe muito sobre a fibromialgia, mas todos concordam ser crónica, aflitiva, angustiante. E ainda mais dolorosa porque não se vê. Há, no entanto, uma luz ao fundo do túnel.
Texto de Ana Pago | Fotografia iStock
O momento em que disseram a Liliana Hermenegildo que tinha fibromialgia, em fevereiro de 2013, foi de viragem. «Passei por vários trabalhos na Câmara Municipal do Entroncamento, sempre a piorar, até que em 2012 estava em jardinagem e não aguentava mais», conta a assistente operacional, 36 anos.
Incansável desde miúda, passou a notar uma diferença abissal na sua energia, mas associou-a ao excesso de peso, ao emprego, às noites com os amigos. Nunca supôs que era o corpo a voltar-se contra ela.
«Eu vomitava com dores, não tinha forças para nada. É complicado acordar sem nos conseguirmos mexer de tanta rigidez, como se fôssemos atropelados por um camião.»
O reumatologista José António Pereira da Silva associa a fibromialgia a personalidades exigentes e perfecionistas, que «levam a uma tensão muscular que determina a fadiga e a dor típicas da doença.»
Igualmente complicado é deixar de se poder planear a vida como até então acontecia, diz o reumatologista José António Pereira da Silva, do Instituto Médico de Coimbra, dedicado a aprofundar a dimensão psicológica da fibromialgia.
A experiência com os seus pacientes, sem exceção, mostra-lhe estar associada «a um certo tipo de personalidade exigente, autocrítica e perfecionista», tensa e interventiva, sempre a mil à hora.
Imagina que lhes seja difícil perderem o controlo: «A meu ver, esta maneira de ser começa na infância e passa a comandar, progressivamente, uma tensão muscular que determina a fadiga e a dor típicas da doença, como toda a gente sabe quando faz exercício para além da conta.»
Sofrem da doença de 2 a 8% da população adulta dependendo dos países
E não, ainda não é uma perspetiva com um suporte científico tão sólido como a versão predominante de uma perturbação no sistema nervoso central, que amplifica a dor com estímulos que não fazem mossa nas outras pessoas.
Ainda assim, Pereira da Silva considera mais útil explicar aos doentes que a fibromialgia resulta da sua forma intensa e perturbadora de estarem na vida. «Aquelas cabeças nem à noite param. Continuam a ter sonos de preocupação e responsabilidade, então acordam a sentir-se estoirados», diz o reumatologista, para quem músculos cansados vão doer sempre até repousarem.
Quanto à síndrome da fadiga crónica, atribui-a ao excesso de atividade cerebral que leva o próprio corpo a defender-se, como quem diz «bom, já chega por hoje».

Foi assim com Fernanda Margarida Sá, 70 anos, antiga professora de Educação Física do secundário. Quase se lembra de escutar essas palavras em pensamentos: «A doença é a coisa pior que se pode imaginar, dificilmente há outra tão dolorosa. Porém, mesmo torcida com dores era incapaz de ver uma linha caída e não a apanhar», recorda a fundadora da Associação Portuguesa de Doentes com Fibromialgia (APDF), que criou em 2002 para ajudar outros como ela.
«Fui diagnosticada aos 45 anos e durante 25 sofri sozinha, a tentar descobrir como dominar aquelas crises permanentes.» Chegou a estar no chão, ao telefone com doentes, encolhida em posição fetal. Foi uma luta aprender a parar.
Mas o que é isto que eu tenho?
É a pergunta que todos os fibromiálgicos se colocam, infelizmente sem uma resposta conclusiva. «A verdade é que ainda não é possível diagnosticá-la através de exames concretos», reconhece Jaime da Cunha Branco, reumatologista no Hospital Egas Moniz, Lisboa, e autor do livro Viver com a Fibromialgia, em parceria com a jornalista Maria Elisa Domingues.
Como se não bastasse ter de se reconhecer a doença por exclusão, com sintomas que se sobrepõem aos de outras doenças (lúpus eritematoso sistémico, depressão, artrite reumatoide e tantas outras), ainda são muitos os médicos, empregadores e famílias que desconfiam. «Deles partem muitas vezes rótulos como “você não tem nada” ou “os exames são completamente normais”», diz.
O diagnóstico foi um alívio para Liliana Hermenegildo «Aceitei porque é o único modo de lidar com a doença. Se vamos viver juntas para sempre, que seja da melhor maneira possível.»
Mas atenção: a dor é real. Não se trata de lamúrias de preguiçosos ou piegas. «À tal perturbação no sistema nervoso central soma-se uma perturbação no sistema inibitório descendente da dor que lhe tira os travões», explica Pereira da Silva.
Dá para imaginar como seria se a dor surgisse e fosse aumentando e explodindo, sem freio, face à entrada dos estímulos. Outra linha de pensamento propõe que a fibromialgia está mais associada a uma disfunção no eixo periférico – com menos fibras nervosas na epiderme a provocarem a sensação dolorosa –, mas a conclusão não é consensual.
«A única certeza é a de que os doentes têm de querer construir felicidade para se adaptarem aos sintomas crónicos», diz o reumatologista de Coimbra. Só assim terão resiliência. E paz.
Da população atingida, entre 80 a 90% dos casos são mulheres com idade entre os 30 e os 50 anos.
É nisso que Liliana Hermenegildo acredita com todas as forças: «Não é por ser otimista que não sofro, quem me conhece sabe quando o meu sorriso tem dor. Simplesmente é a minha forma de estar», diz a assistente operacional, que trabalha, cuida da casa, da filha de 17 meses, tudo.
«Há dias em que a casa fica para trás, dias em que não brinco nem me rio. Mas para ela vou sempre buscar um bocadinho da pouca energia que me sobra.» Só o facto de saber o que tinha já foi um alívio: afinal não estava louca. Não era por ser gorda que sentia aquilo. «Aceitei porque é o único modo de lidar com a doença. Se vamos viver juntas para sempre, que seja da melhor maneira possível.»
«Visto que a dor assume um papel central e não existem evidências físicas, como uma perna partida ou um braço suturado, os outros tendem a percecionar as queixas como exagero», diz o psicólogo Ricardo Pereira Campos.
E esta é sem dúvida a estratégia ideal para minimizar sintomas, sobretudo ao nível de quadros depressivos e ansiosos, diz o psicólogo Ricardo Pereira Campos. «Visto que a dor assume um papel central e não existem evidências físicas, como uma perna partida ou um braço suturado, os outros tendem a percecionar as queixas como exagero, chamadas de atenção e até simulação.»
A este respeito, diz o especialista, os países do norte da Europa parecem mais sensibilizados do que nós para uma doença que a OMS apenas reconheceu em 1992 e afeta cerca de trezentos mil portugueses, mais mulheres do que homens, entre os 20 e os 50 anos. Casos como o de Joana Vicente, que teve os primeiros sintomas logo aos 11 anos, são a exceção que confirma a regra.
«É aterrorizador pensar que temos de viver com dor para o resto da vida, mas tentei pegar nela e transformá-la em amor», diz Joana Vicente. A psicoterapia fez milagres, recomenda-a a todos os que convivem com esta doença crónica.
«Começou com uma dor na perna direita que me deixava muitas vezes incapaz de andar. Aos 16 anos vieram a dor generalizada e migratória, a fadiga, as insónias e a falta de concentração», conta a responsável pela Associação Portuguesa de Jovens com Fibromialgia (APJOF), que criou em abril de 2016, num acesso de irritação com a doença.
Aos 17 anos, após consultar médicos de várias especialidades para saber o que a impedia de ser uma adolescente comum, um neurologista foi decisivo: fibromialgia. «Deixei de conseguir ir às aulas, estudar, ter vida social.» Caiu numa depressão de que lhe custou a sair: como se aceita um sofrimento que nos priva de tanto?
Hoje em dia, com 29 anos e a trabalhar em hotelaria, Joana é bastante ativa dentro dos seus limites. «É aterrorizador pensar que temos de viver com dor para o resto da vida, mas tentei pegar nela e transformá-la em amor», diz.
A psicoterapia fez milagres, recomenda-a a todos os que convivem com a doença crónica. Também ajudam a medicação e as sessões de fisioterapia (levou anos a acertar com elas), além de manter a esperança: «Nunca podemos perdê-la, mesmo que só nos apeteça chorar», diz.
Graças a um novo fármaco, ainda em estudo, há cada vez mais fibromiálgicos a garantir terem menos dores, menos cansaço, menos perdas de memória, melhores sonos e a sensação de acordarem recuperados.
Essa mesma esperança faz Fernanda Margarida Sá sentir que renasceu em setembro do ano passado, depois de em tempos ponderar pôr fim a tudo. «Andava com tonturas, amnésia, a cair e a fraturar costelas, quando o meu médico percebeu que estava a fazer microenfartes e me receitou somazina», conta a fundadora da APDF.
No dia seguinte a tomar este fármaco ativador do cérebro à base de citicolina, acordou sem ponta de dor, arrumou a casa e foi passear – até hoje. Bem podem dizer que aquilo não faz nada: ela é que sabe como os sintomas se tornaram mais espaçados e fracos.
«O Instituto de Medicina Molecular e o laboratório Ferrer hão de chegar aos seus próprios resultados, mas certo é que há cada vez mais fibromiálgicos a garantir terem menos dores, menos cansaço, menos perdas de memória, melhores sonos e a sensação de acordarem recuperados», diz a responsável da Associação Portuguesa de Doentes com Fibromialgia, animada.
De repente, é como se estivéssemos a ouvir de novo o médico Pereira da Silva a falar de felicidade e de como deve ser ela a medida de todas as coisas. Mais limitações só fazem que tenhamos de nos reinventar melhor.
Sinais de aviso do corpo
Não custa ficar atento, sobretudo se tiver dor à apalpação pelo corpo (os pontos fibromiálgicos são comuns em todos os doentes) e mais alguns destes sintomas por um período superior a três meses.
- Rigidez: Acompanha os despertares e pode surgir ainda quando o doente passa algum tempo de pé ou sentado;
- Dores agudas: Umas vezes são generalizadas, noutras localizadas nas costas, ombros, pescoço, cabeça, rosto, pernas, joelhos, mãos ou peito. Podem ter diferentes intensidades e assemelhar-se a picadas ou queimaduras;
- Fadiga constante: Mesmo dormindo toda a noite, o acordar é marcado por um cansaço intenso;
- Problemas de memória: A memória e perceção das coisas ficam completamente diferente, com o cérebro a parecer que está em permanente esforço.
- Pouco sono: As noites são mal dormidas e nada reparadoras, sem que o cérebro consiga desligar das preocupações;
- Formigueiro: Tal como dormências e inchaços, surge frequentemente nas extremidades do corpo: mãos, braços, pernas e pés;
- Perturbações gastrointestinais: Prisão de ventre, diarreia e inchaço abdominal são sintomas frequentes, a par de refluxo ácido e intestino irritável;
- Sensibilidade à temperatura: Sobretudo o frio pode tornar-se um suplício para os doentes fibromiálgicos;
Na fotogaleria em cima revelamos alguns dos famosos que sofrem desta doença.
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