A imagem não é verdadeira. Isto não aconteceu. Ou pelo menos eu não vi. Mas imaginei. Fiz este filme na minha cabeça à medida que ia lendo, pasmado, cada vez mais agoniado, os comentários nas redes sociais às várias notícias que davam conta da morte de Joaquim Bastinhas, no final de dezembro.
Toda a gente pode dizer e escrever o que quiser. Mas devem? Entra na consciência de cada um, e essa, já se sabe, tal como o bom senso, não foi particularmente bem distribuída à nascença.
Eu, que não sou de abrandar para ver acidentes na autoestrada e me enervo com quem o faz, não consegui parar de ler. Durante os três dias que se seguiram ao anúncio da morte e funeral do toureiro, fiz várias vezes esse exercício masoquista e escatológico de vaguear pelo esgoto a céu aberto de palavreado sujo capaz de envergonhar o mais ordinário dos trolhas. Por princípio e por respeito à família, não reproduzo o que li em dezenas de comentários (eram centenas, talvez milhares, em tantos órgãos de comunicação social). O que levou aquela gente a regozijar-se tanto com a morte de outro ser humano? Que falta de noção pode haver em tantas cabeças para o chorrilho de poluição verbal em tantos carateres desperdiçados em sentimentos daqueles? Um homem morreu numa cama de hospital no último dia do ano e uma longa turbe desata em festa?
Ainda que se possa ficar chocado com o sofrimento de animais e se opte por lutar com as armas ao dispor para acabar com um espetáculo que perpetua a dor de outros seres vivos em nome de uma tradição, isso não justifica – não devia justificar – o gáudio pela morte de uma pessoa. Falta ali um filtro essencial de decência que devia impedir que alguém escrevesse o que escreveu. Que tanta gente escrevesse o que escreveu.
Se podem escrever aquilo? Claro que podem. É uma conquistas da história contemporânea do país: toda a gente pode dizer e escrever o que quiser. Isso é liberdade de expressão e está consagrada na lei. A mesma que pode defender os ofendidos com palavras que lhes sejam dirigidas. Poder, podem. Mas devem? Entra na consciência de cada um, e essa, já se sabe, tal como o bom senso, não foi particularmente bem distribuída à nascença.
Não é preciso gostar de touradas – eu não gosto, de todo – para ficar consternado com tudo o que se escreveu durante aqueles dias sobre a morte de uma pessoa. Sabemos que touradas e toureiros são arena fértil para ódios ferozes porque nos afrontam moralmente. E sabemos que as redes sociais são o meio eficaz para gritar e vociferar o descontentamento. O desagrado ampliado. Mas… mas do outro lado há gente que gostava dele e que se ressente. Há uma família em sofrimento. Há um espaço de luto que é preciso respeitar para não se ser bully. Ou troll. Ou apenas deselegante e mal-educado. E sem empatia. Essa extraordinária capacidade de nos colocarmos na pele do outro.